Saiu no Jornal de Notícias uma crónica bastante
interessante de Daniel Deusdado sobre a ditadura a que a nossa alimentação está
sujeita. Passo a transcrever abaixo.
A ditadura chegou ao campo
Sei que é difícil atrair a
atenção dos leitores para um assunto como este: “sementes”. Mas das sementes e
da liberdade de as plantar depende uma boa parte do nosso futuro porque 75% da
biodiversidade agrícola foi extinta no século XX e as coisas não vão ficar por
aqui. O esmagador poder financeiro da indústria química quer multiplicar leis,
por todo o Mundo, para impedir os agricultores de serem livres de usar as
sementes não certificadas nas colheitas seguintes. A espiral é terrível: quanto
menor produção agrícola com sementes ancestrais, pior comeremos.
Num filme notável chamado
“Food Inc.” (Comida, Lda.) os autores mostram, por exemplo, como a
multinacional Monsanto consegue perseguir e levar à falência vários produtores
rurais. O argumento é simples: se no campo deste agricultor houver plantas
cultivadas com sementes Monsanto e ele não for cliente da empresa, é processado
por estar a usar sementes patenteadas, mesmo que elas tenham sido propagadas
pelo vento e estejam misturadas com as suas. A natureza passou a ter ‘dono’.
A Monsanto é a mais importante
empresa mundial produtora de transgénicos. Atrai os agricultores através de um
marketing aliciador de melhores colheitas. Mas os alimentos obtidos a partir de
sementes alteradas laboratorialmente, cujo ADN não é compreendido pelos
organismos humano ou animal, arrastam interrogações que não compreendemos
antecipadamente. Foi assim que se alimentaram herbívoros com rações à base de
carne e se rompeu uma lei da natureza. Esta experiência foi um dos motivos
apontados para o surto da doença das vacas loucas.
As culturas transgénicas estão
já na mesa de pessoas de todo o Mundo. Surgem em coisas tão importantes como a
alimentação dos bovinos (por exemplo, na carne importada do Brasil ou da
Argentina), na soja, arroz, milho ou em algo tão simples como o mel produzido
por abelhas próximas de campos transgénicos. Um relatório da Organização das
Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) dizia recentemente que a
maioria dos alimentos consumidos no mundo ocidental provém apenas de 12
espécies de plantas e cinco espécies de animais, apesar de terem sido
catalogadas milhares de espécies comestíveis. Pior: arroz, trigo e milho
constituem 60 por cento da alimentação humana, sendo estes, na sua esmagadora
maioria, provenientes de sementes tão apuradas que o nosso corpo já não ‘lê’
estes alimentos como “arroz”, “trigo” ou “milho”. Obviamente nem vale a pena
falar da ‘fast-food’ ou da comida industrial.
Cristina Sales, uma médica que
o Porto tem a sorte de ter por perto, escreve há vários anos sobre o caos da
alimentação moderna e percorre o Mundo como oradora em conferências com este
tema. E o que diz? “O nosso corpo tem um histórico de milhões de anos na
absorção dos alimentos e está cada vez mais incapaz de reconhecer o que come.
Não tem as enzimas necessárias à sua digestão e metabolismo. Por isso gera uma
reação inflamatória contra os alimentos porque os considera ‘elementos
estranhos’, como se fossem tóxicos. Essa é uma das razões porque tanta gente
aumenta de peso ou de volume: porque retém líquidos nesse processo
inflamatório. E isso afeta todas as pessoas, incluindo as magras”.
Jude Fanton, da organização
“Seed saver (Salvar as Sementes)” disse há meses ao programa Biosfera, da RTP2
(com o qual trabalho) uma coisa simples: “Se nos recordarmos do sabor da comida
dos nossos avós – as maçãs, os vegetais, etc. – eles tinham um sabor
verdadeiramente forte e intenso. Isso significa mais nutrição. Essa é talvez a
razão pela qual estamos a engordar. Temos de comer cada vez mais para conseguir
os nutrientes de que precisamos”.
A ditadura agrícola e
alimentar é este louco processo de quebrar as regras da natureza em busca de
mais rentabilidade. Se fecharmos os olhos à origem dos alimentos, contribuímos
gradualmente para uma vida cada vez mais tóxica. Essa perda de ‘liberdade de
escolha’ e ‘biodiversidade essencial’ afeta o ADN humano que não deveríamos
alienar numa só geração. Além disso, replica o modelo económico que
supostamente queremos combater: os lucros ficam com as grandes multinacionais e
as doenças em cada um de nós.